sexta-feira, 8 de março de 2019

Jantar

O aroma do molho de tomate com manjericão despertava seu paladar, muito antes da refeição ficar pronta. Sentia por dentro uma vontade de parar o preparo no meio para já saborear o conteúdo da caçarola, mas o que seria de seus convidados se assim o fizesse? O bom-senso a fez mudar de ideia. Desviou o foco para a massa recentemente preparada na mesa, pronta para ser cozida em fogo baixo, à perfeição. Tinha orgulho de seus dotes culinários.

A água estava prestes a ebulir. Pegou seu fetuccinne como uma mãe segura seu precioso bebê. Seus dedos grossos serviam bem de apoio para levá-lo à panela. Nada lhe escapou. Com o cuidado devido para não romper as fitas de pasta, mergulhou-as.

- Vamos, finalmente, experimentar um de seus famosos pratos! – Uma voz alta e trinitante como a de um pavão ecoou na cozinha.

- Sim, mana. Mas não espere muita coisa, não. Ao preparar uma refeição, os pratos simples são os meu preferidos, e é o que quero compartilhar hoje.

- Vejo que está de bom humor! Então não se importará se eu roubar uma garrafa de vinho para a mamãe.

- Vá em frente! Logo me juntarei a vocês.

Acompanhou com os olhos as ações de sua irmã pela cozinha. A garrafa na adega climatizada, a taça de acordo com o vinho escolhido, como havia lhe ensinado há algum tempo. Após sua saída, voltou a atenção ao molho que estava sendo preparado. Retirou a massa do fogo e o escorreu. Desligou o fogo do molho.

Enquanto preparava os pratos para os convivas, lembrou quando era obrigatório servir ao pai antes dos outros. Seu rosto cerrado, com as rugas na testa como se sempre estivessem presentes durante toda a vida acentuavam sua rispidez. Não era uma pessoa ruim. Mas não era um pai. A irmã tem razão ao dizer que estava de bom humor. Desde sua partida, ela finalmente pode ser o que bem quisesse ser. Procurou um bar para trabalhar como garçonete, logo num restaurante, daí para a cozinha a preparar sucos, logo preparava ingredientes. Então um chef viu que ela poderia ser uma chef após ela dar palpites em suas receitas e a ajudou a pagar um curso. Voltou como cozinheira, sous chef, então abriu seu próprio restaurante. Um longo caminho, mas valeu cada gota de suor.

A sala de jantar, com a mesa posta adequadamente, sua mãe na ponta, com a taça de vinho à mão sorrindo graciosamente, escutando o que seu irmão mais novo tagarelava. A figura paterna que ela gostaria de ter permanecido na sua vida infante. É bom ver ele de volta ao convívio familiar depois de tantos aniversários perdidos, anedotas não contadas e abraços negados pela distância forçada. Poucos preciosos momentos foram-lhes permitidos juntos durante a vida de seu pai como o homem da casa.

Sua irmã sentava-se à frente dele, os olhos grandes fixados no tio, rindo largamente sua risada alta a cada situação apresentada por ele. Seu namorado ria junto, mais por conta da risada de sua amada do que por conta do que seu tio relatava. Sua irmã está em boas mãos e isso era o que importava.

Ao sentar-se à mesa, ao lado do tio querido. Lembrou-se da última refeição que fizeram todos juntos. Se ela não estivesse presente naquela noite, não acreditaria que eram as mesmas pessoas felizes daquele momento. O ar pesado do luto fazia, naquela ocasião, a sala de jantar da casa de seus pais parecer muito mais escura do que era de fato. Seu pai não se permitia sentir nada, sua vida havia lhe transformado num homem apático, cresceu assim e progrediu assim, ele dizia. Sua mãe acabara de perder a mãe e ele não demonstrava a mínima condolência. Todos estavam inconsoláveis, inclusive o tio. Principalmente o tio, que cuidara dela até o fim de sua vida, pois a irmã se casara e o marido não quis ter mais uma pessoa para cuidar quando a doença veio.

O pai não gostava dele. Agora que a sogra havia partido não teve mais razão para continuar fingindo. A discussão naquela noite foi a última interação social entre os dois.

Sua mãe radiante como nunca. Neste momento teve a certeza de que seu pai não fará falta alguma para ela. A dúvida de que sua mãe era feliz ou triste com ele sempre estivera em sua mente, não mais: sua mãe não era infeliz, mas não era feliz, ela simplesmente não sentia. Agora com a partida dele percebeu isso, nunca havia visto sua mãe tão leve, ombros levantados, queixo erguido. Seu pai não era um homem ruim, só não era um pai, mas também não era um marido.

O fetuccinne estava no ponto perfeito, o molho com a acidez perfeita, o vinho perfeitamente escolhido pela irmã a deixou orgulhosa por ter sido uma boa professora. Para quem não gostava de comer na companhia dos outros enquanto seu pai convivera junto ela havia mudado completamente após sua partida. Algo estranho nisso a perturbava, mas não saberia como perguntar o motivo da mudança.

Ela nunca fora tão feliz assim, mesmo antes de ter se fechado durante um bom período de sua vida, quando ainda eram menores. Durante umas férias, sua irmã ficara com o pai em casa enquanto ela havia ido visitar a mãe e o tio. Quando retornaram da viagem, sua irmã havia se tornado mais quieta, mas ainda assim nada mudou entre elas. Ela ficava muito estranha na presença do pai.

Neste momento, se deu conta da razão de esse jantar não se parecer em nada com o último jantar em que estiveram reunidas com o tio. Percebeu o motivo pelo qual não parecia que acabavam de retornar de um funeral.

Ele não fora um pai. Ele não fora um marido. Ele fora um homem ruim.

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